domingo, 14 de junho de 2009

Você conhece algum Pardal?

"Aquele era um país especial! Lugar onde todos tinham um sonho. Ter um sonho torna as pessoas especiais e diferentes; elas passam a viver e a agir de acordo com este sonho. São poetas, artistas...enfim, sonhadores. Na verdade, era mais do que um sonho: era um sonho em comum.
Qual era? Bem, todos sabem que os sonhos não podem ser contados de uma só vez. Eles são enigmáticos e misteriosos: disto vivem os sonhos, de enigmas e mistérios. Naquele lugar todos sabiam que deveriam olhar para a terra e se apaixonar por ela. A terra era a mãe carinhosa que retribuía generosamente os carinhos que lhe eram feitos por seus filhos. No mundo onde todos se encantam com a terra há uma classe especial de pessoas, de magos, feiticeiros dos quais depende o futuro: eram os camponeses.
Difícil imaginar que no mundo da tecnologia e da modernidade alguém ainda escolha o camponês como classe especial. Mas no lugar de que estamos falando, os camponeses sabiam como ninguém acariciar a terra e mostrar como o futuro pode manifestar um 'advento' no presente.
Estes magos camponeses eram mais do que especiais: eram símbolos. Estavam organizados, viviam organizados. Compunham uma espécie de clero chamado 'Liga Camponesa' e nela estampavam um ideal de felicidade. O que é felicidade? Perguntavam os professores às crianças na escola elementar. Felicidade é poder um dia se tornar camponês e aprender a acariciar a mãe terra para viver de seus caprichos e ternuras.
Assim se passavam os dias e os anos. Esta liturgia se repetia a cada geração e o povo daquela pátria partilhava o sonho e o ideal movidos pelo desejo de estar juntos. Até que um dia, algo estranho aconteceu.
Apesar de terem se preparado para enfrentar o inimigo externo, mesmo que este viesse de uma super potência em armamentos de qualquer natureza, os habitantes daquele país descobriram um inimigo inesperado: o pardal. O pardal, embora aparentemente inofensivo, era um inimigo voraz porque comia grãos.
A explicação era bastante simples: no país da magia camponesa, o trabalhador da terra era o sacerdote e o ideal de felicidade. Todo mago, feiticeiro, sacerdote ou religioso (na essência eles se confundem) faz sua magia e desta magia o povo ao seu redor se alimenta. É básico: um apaixonado, por exemplo, é um mago das palavras. As pessoas o ouvem e se alimentam de suas palavras. Esta é a garantia do seu prazer. Assim como o alquimista produz poções mágicas e os feiticeiros fervem em imensos caldeirões sopas de desejos que fazem arrepiar até o último fio de cabelo.
Se o mago é o camponês, o produto de sua magia é o que a terra devolve após ser acariciada, ou seja, os grãos. O pardal vem e rouba os grãos. Traduzindo: o pardal é alguém que rouba os sonhos e muda as coisas quando tudo parecia estar indo bem. Tenho certeza que todos nós conhecemos muito bem esse tipo de pássaro: alguém que rouba o sonho e faz da nossa vida um mundo encantando de surpresas.
Logo, era preciso eliminar esta possibilidade. A solução também foi simples: eliminar todos os pardais. A ordem foi dada e a partir de então, todos os pardais foram mortos e uma lei foi proposta no céu daquele país: nestes ares pardal não voa! Triste pretensão aquela. Pássaros são iguais aos amores. Não é possível dar ordens ou decidir a respeito. Ninguém pode dizer: não voe por aqui!
Depois disso, os camponeses puderam continuar sua magia. O sonho de felicidade nunca se realizou completamente porque, como todos sabem, sonhos se alimentam de desejos e desejos crescem na ausência - só desejamos aquilo que não temos. Por isso, sonhos foram feitos justamente para serem sonhados e não realizados.
Um dia, alguém ouviu lá no fundo da existência uma canção. Era o canto de um pardal adormecido. Este alguém resolveu que era preciso fazer algo: seria possível trazer os pardais de volta? Em outras palavras: era melhor partilhar a alegria inusitada do pardal do que a certeza de um cesto cheio de grãos. Poeticamente: de que vale a segurança se em troca não podemos viver um grande amor?
E eles começaram a voltar. Logo os céus estavam povoados destes voadores. Os magos camponeses até que olharam com encanto. Agora, os símbolos eram outros - os pardais eram sinais de liberdade voando no céu da imaginação; são grandes amores que não podem ser aprisionados (pardais não sobrevivem às gaiolas) e trazem consigo a misteriosa e enigmática insegurança que os torna ainda mais irresistíveis.
Desta vez não foi promulgada nenhuma lei. Apenas uma descoberta: há um pardal morando dentro de cada um. Para revelá-lo, basta silenciar o espírito, fechar os olhos e aceitar a troca da segurança da normalidade pelo inusitado do amor. Com certeza, ele desperto voltará a voar nos céus da imaginação revelando que os amores podem até adormecer, mas uma vez despertos fazem o mundo habitado um lugar muito mais interessante para se viver."
Paulo Roberto Pedrozo Rocha
O socialismo chinês tratou de eliminar os pardais de seu país uma vez que eles eram taxados de 'pássaros nocivos', pois, como eles comiam grãos, seriam nocivos à utopia camponesa que os comunistas queriam construir. Atualmente, alguns ornitologistas trabalham na reabilitação da vida dos pardais na China, entre eles o chinês Zheng Guangmei que ganhou notoriedade após explicar este procedimento e assumir o erro consequente deste modo de atuação.